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Conheça o quarto volume da publicação “Arte na espreita e na espera – Poéticas na Quarentena”. Organizado por Bené Fonteles reunindo produções realizada por diversos artistas, escritores e músicos durante o período de isolamento social frente à pandemia do Coronavírus. Esse volume é uma homenagem a Ailton Krenak.
lista completa de participantes do volume 4:
Texto de apresentação “Arte na espreita e na espera – Poéticas na Quarentena – Volume IV”:
Nestes tempos que se pode dizer sombrios, muitos são os que vieram ao mundo para iluminar a Terra, curá-la de sua ignorância, da irresponsabilidade dos humanos em não serem mais humanos. Chegamos ao ponto de atingir a insanidade ambiental, a ignorância cultural, a vileza política e a avareza econômica em meio a uma pandemia não só de corpo, mas também de doença da alma. A pandemia nos dá o recado cruel, ainda não compreendido, e talvez só se afaste quando aprendermos a lição de casa.
Poucos e preciosos são os que vieram com dons e talentos, qual Ailton Krenak. Sua arte original de pintar e desenhar revela a cosmologia de seu povo; sua oratória, com fluidez e lucidez, vai além do intelecto, tem inteligência sensível e vai ao cerne e essência das questões; sua inspiração de médium do Grande Espírito, que sempre o ilumina, deixa-o também como artivista raro para o fim do mundo adiado e aberto a novas narrativas. Krenak mesmo diz: “o perigo é não termos mais as narrativas dos ancestrais do mundo que construímos a duras penas”. Que histórias restarão a contar para nossos netos e eles, aos seus filhos, ao redor de uma fogueira, mesmo que ela seja como agora, virtual?
Conheci Ailton na década de 1980, quando nós, de todos os segmentos da sociedade brasileira, nos preparávamos para ter mais direitos na Constituinte de 1988. Ele se pintou de jenipapo no Congresso Nacional, numa performance magistral, para desmascarar a face dos políticos e empresários que há cinco séculos vêm promovendo a barbárie com o genocídio da natureza e dos povos originários.
Eu tinha lançado em 1987 a campanha “Pelos respeito aos direitos indígenas” com exposições, shows e rituais artísticos pelo país. Krenak, além de outras lideranças indígenas, ficou tocado por aquele artista solidário e leal à causa indígena, que começou a denunciar o extermínio a partir de 1981, quando morava em Mato Grosso.
Fizemos muitas parcerias por ocasião da vida curta, mas fértil e combativa da União das Nações Indígenas e da Embaixada dos Povos da Floresta em São Paulo. Elas se estenderam com estes movimentos de Krenak e seus parentes da floresta, também urbana, porque o Brasil foi e é tão irresponsável com sua herança ancestral. Foram parcerias que muito me honraram e ao Movimento Artistas Pela Natureza, do qual sou coordenador e ele, um membro importante.
Sua obra ilustrou nossas edições, inspirou nossas atividades e concepções poéticas e estéticas, e em quase tudo que fiz está a sua presença soberana, como na minha obra OcaTaperaTerreiro, na Bienal de São Paulo de 2016, onde as colunas estampavam uma pintura de Krenak.
Na OcaTaperaTerreiro ele atuou nas ativações que decidi chamar de “Conversas para Adiar o Fim do Mundo”, parafraseando e antecipando a publicação do seu livro fundamental lançado em 2019. Pequeno, mas grande livro que está fazendo a cabeça do Brasil e do mundo, revolucionando até o fechado e limitado mundo acadêmico.
Krenak tem atuado incessantemente em muitas universidades e instituições do Brasil e da Europa, do presencial às lives constantes, semeando ideias que o fazem um dos mais importantes e inspirados pensadores da Terra. Sua liderança deixou de ser só da causa indígena, para a qual sempre foi uma presença seminal. Ele lidera de uma forma arejada, sutil, criativa e plena, ao contrário do discurso dos líderes políticos, dos filósofos loquazes, dos antropólogos donos dos índios, dos técnicos inúteis, dos economistas vorazes e dos ecologistas sem prática e sabedoria ambiental. Todos eles mais discursando do que contribuindo para o envolvimento do ser humano no projeto original de ser mais humano consigo mesmo e depois, com todas as formas de vida.
Krenak é contra o desenvolvimento que nos legou uma herança amarga de destruição não só ambiental, mas cultural e espiritual. Ele nos fala do envolvimento real com nossas necessidades vitais para continuarmos nossa narrativa humana antes que o céu caia sobre nossas cabeças, assim como apregoavam os habitantes daquela famosa e resistente aldeia gaulesa de Asterix e como faz magistralmente e magicamente Davi Kopenawa – grande parceiro de Ailton –, ao nos narrar semelhante intenção em seu livro “A Queda do Céu”.
Nunca esqueço sua indignação e como transcendeu a invasão do rio Doce pela lama tóxica, como continuou acreditando que o avô mítico Watu, o espírito do rio, paira sobre ele além da matéria de águas, peixes e plantas. Para Krenak, o avô-rio está esperando o tempo da redenção no mundo dos sonhos de cada Krenak, que quer voltar feliz às suas margens puras, belas e piscosas.
Foram muitas as conversas e ações nestas últimas quatro décadas em que convivi e aprendi com Krenak, muito mais inspiradoras do que ele narrou em entrevistas, filmes, vídeos, livros, porque conheço Ailton de conversas à lua cheia.
Eu o reconheci Txai, irmão e aliado, sob um céu de tantas estrelas na beira de fogueiras, a sós, nós com o Grande Espirito. E sei assim da sua sabedoria, além de ativista indígena e político, porque sei da seiva a verter do seu ser integral, poético e espiritual. Sei da sua compreensão e compaixão infinitas em meio ao caos, sei como ele o ordena harmonioso e vive no raso terreno, o vasto do Cósmico, a nos narrar uma cosmovisão que nos engrandece como ser e cidadão planetário, não pertencido ao limite de uma nação.
Ele é um herdeiro de Aimberê, que liderou a chamada Confederação dos Tamoios no século XVI e profetizou: “Eles nos destruirão, mas nós renasceremos no coração do homem branco”. A profecia da destruição ainda não foi total, mas é o projeto político, cultural e econômico da nação. Eles não conseguirão!
Eu posso ser este humano branco de cor, mas meu coração é indígena e, por isso, assumi desde a década de 1970 esta identidade que me honra e da qual ninguém me tira o direito universal de Ser no Mundo.
Assim como Vinicius de Moraes era o branco mais preto do Brasil, e o provou com seus afro-sambas com Baden e outras atitudes corajosas, digo que muito me honra partilhar, respirar no mesmo espaço virtuoso de um país de verdade que sonhamos e que o Txai Ailton Krenak habita. Ele mora além da casaOca da matéria. Só assim pode nos iluminar com seu Grande Espírito vindo da Origem da Criação, onde a lucidez é Luz e consciência, e o Amor É!
Haux! Haux!
Bené Fonteles
Sítio Rosa dos Ventos, Minas Gerais
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